sexta-feira, 22 de maio de 2009

Catarse



O texto que se segue é a minha tentativa de catarse emocional, é o descarregar de muitas emoções contidas dentro de mim, é a descrição de tudo o que sucedeu no antes e depois do falecimento da Amélia. É um testemunho extenso e muito pessoal.


Quando faleceste eu julguei que iria escrever sobre isso, a toda a hora me vinham frases e palavras à cabeça para descrever o que eu estava a sentir e o que todos os outros sentiam também. Mas o que é facto é que na altura não tive a coragem necessária para dar asas à minha alma e fazer-te o que eu posso apelidar de homenagem escrita. Volvidas duas semanas e meia, encontro-me a tentar transpor para o papel o que senti, as tormentas que me assaltaram, as lágrimas que rolaram em mim e nos outros, sentimentos desconexos, caras taciturnas à minha volta, a incompreensão espelhada nas faces, conversas que tive com os mais importantes da tua vida. Sabes, é estranho estar a escrever-te quando já não estás entre nós, é estranho dirigir-te um escrito, é estranho falar-te ao coração como se ele ainda batesse. Mas não encontro outra forma de escrever tudo o que preciso, e acima de tudo, o que conseguir escrever, já que tenho a certeza de que muito ficará por te dizer. Os dias que antecederam a tua morte (estranho como agora uso a palavra com relativa normalidade), foram surreais. Uma semana antes, quando te visitei nos cuidados intensivos eu tive a certeza de que ficarias curada, de que mesmo não voltando a usufruir de uma vida normal irias voltar a sorrir entre nós. Olhei para ti, e apesar de alterada pelo coma, eu via-te quase como antes do acidente. Eu sei que era um pouco obra da minha cabeça, eu não queria aceitar que estavas da forma que estavas, foi-me mais fácil refugiar na imagem que sempre tive de ti. Recordo-me perfeitamente da angústia que se apoderou de mim antes de entrar no bloco onde estavas, afinal as descrições que todos tinham feito davam conta que estavas bastante modificada pelo acidente e pelo coma, o que era bastante verdade, e eu não sabia como te ia encontrar. Ao percorrer aqueles corredores brancos e vazios junto com o teu filho, eu pensava no que iria conseguir dizer, se me conseguiria conter diante dele e na forma como ele iria reagir. Quando chegámos à tua cama, ele agarrou a tua mão com força e confesso que nesse momento quase chorei, mas procurei manter-me forte, e consegui. Conversei com ele distraindo-o do contexto em que estávamos, e quando ele me disse assertivamente que irias estar acordada para lhe dar os parabéns no dia de aniversário dele, eu acreditei com ele, eu pensei que sim, que irias conseguir. Durante as duas semanas de internamento, não foi fácil, o aniversário do teu filho estava a chegar, a tua filha acreditava que ia falar contigo no Dia da Mãe. E eu caí também na teia de ingenuidade deles, mas afinal todos precisávamos de acreditar fortemente que ias ficar bem. Quando eles jantavam todos cá em casa, as lágrimas começavam sempre a rolar-lhes pela cara, eu nem sempre me consegui conter, mas sei que fui exímia no apoio que sempre lhes prestei. A tua filha encontrou mais do que nunca uma amiga em mim, e encontrará sempre. Os olhares de agradecimento que o teu marido me fazia ao reconfortar os vossos filhos valiam milhões, de facto, nessa altura senti-me tão, mas tão útil. Passada então uma semana de ter estado no hospital, no dia do aniversário do teu filho, ao ouvir uma conversa apercebi-me de que falavam que a operação não te tinha feito ficar melhor e que já só te restavam poucas horas. O meu coração deve ter parado, era como se aquilo não pudesse acontecer, ainda hoje eu não sei aceitar isso, nem me convencer de que já te foste para sempre. Pensei na dor dos teus filhos, eu precisava estar com eles, mas eles estavam longe, eu ia ter que esperar. Foi um dia estranho para mim, era como se tal fosse impossível acontecer, simplesmente não fazia qualquer sentido. Era sexta-feira. No sábado, os meus pais, também no seu sofrimento pela amiga que se ia, pelo amigo que ficava cá sozinho com os três filhos, disseram-me que por causa da autópsia o funeral só ia ser na segunda ao final da tarde. Eu pensei que era demasiado tempo de espera para todos, só ia aumentar o sofrimento daqueles que gostavam de ti. Mas não havia nada a fazer. Eu só pensava como é que os teus filhos e marido estariam. Até que chegou domingo. Pela primeira vez desde a tua morte, vi os teus filhos. Sabes, com o mais velho nunca tive grande confiança, mas estava solidária com ele também. O do meio, eu não sabia como chegar a ele. Ele fechou-se numa concha e não deixava as mágoas saírem cá para fora, procurava aparentar uma força interior que já não possuía. Senti-o desamparado e apoiei-o da forma que pude. Mas com a mais nova, a tua filha, quando cheguei ao quarto onde ela estava, não aguentei mais. A forma como ela chorava e expressava a injustiça de que se sentia alvo fizeram-me revelar a minha fraqueza. Mas fui buscar todas as minhas forças e abracei-a com força, acho que nunca tinha empreendido tanta força num abraço. Sei que ela se sentiu mais amparada e isso reconfortou-me. Sei que ela encontrou em mim a escapatória para todas as pessoas que lá vinham dizer os malditos pêsames e dizer que percebiam o que ela estava a passar. Não, ninguém percebia, nem mesmo eu. E os pêsames para ela eram terríveis, mas ninguém compreendia que isso é do pior que se pode dizer naquela situação. Saímos daquela casa e viemos passear. Nesse momento senti-me ainda mais útil, relembro a forma como rimos juntas, as conversas banais que conseguimos ter apesar de tudo o que se passava ali perto. Eu sei que foi bom para ela. E, graças a deus, todos perceberam isso mesmo e sugeriram que ela dormisse em minha casa. Eu recordo-me de pensar como iria ser, se ainda tinha estofo para a fazer esquecer tudo o que se estava a passar por muito mais tempo. E consegui, deu-me muita satisfação fazê-la sentir-se feliz por instantes. Naquele conjunto de dias, eu aprendi o quanto era bom sentirmo-nos úteis, fazermos bem a alguém. Sabes, eu olhava para ela sentada na minha secretária, rindo comigo e fazendo todas as coisas que sempre fazia quando cá vinha, e pensava que aquela não era a rapariga a quem tinha acabado de morrer a mãe. Senti-me feliz por estar a fazer alguém feliz. Dormimos, no dia seguinte ao acordarmos custou-me imenso ter de abandoná-la durante a manhã, mas lá teve que ser. Confesso que durante a manhã consegui estar bem, alhear-me também eu do que se estava a passar. Depois chegou a tarde, a hora do funeral aproximava-se e eu sabia que cada vez ia ser mais complicado. Enquanto não vieste, a tua filha esteve comigo, ora animada, ora a chorar no meu ombro. Recordo também o gesto que tive com o teu filho, naquele momento senti que ele era ainda mais frágil do que aparentava e que precisava também do meu apoio. Quando chegou a carrinha funerária ao sítio onde a esperávamos, e partimos atrás dela, nunca mais nenhum de nós se conteve. Ir no carro só com os teus filhos e marido custou-me imenso, eles choravam uns pelos outros, eu já não sabia que mais dizer para os reconfortar, eu já não controlava também o meu choro, eu já não me sentia suficiente para apoiar a tua família, mas fiz tudo o que pude. Chegados à igreja, com duas horas de atraso graças à autópsia, tive de os abandonar. Todos respeitamos a vontade do teu marido e filhos, de ficarem algum tempo sozinhos contigo dentro da igreja e de te verem, apesar do estado de decomposição que já deverias aparentar. Lá dentro, só ficaram vocês e o meu pai. O teu marido pediu que ele ficasse, para lhe dar apoio. Recordo-me de nesse momento ter sentido que o meu pai de facto era um pilar importante para o teu marido. A minha mãe e a vossa melhor amiga aguardavam na sacristia e eu chorava à porta, nos ombros que minhas amigas e amigas da tua filha me ofereceram. Elas foram importantes. A minha dor era complicada de descrever. Eu sofria pela amiga mais velha que representavas para mim, pela amiga de família que nos eras, pelos teus filhos, pelo teu marido, pela minha mãe de quem eras a melhor amiga, pelo meu pai de quem o teu marido é o melhor amigo. Sofria por multiplicadas razões e o funeral foi muito complicado para mim. Depois no teu enterro tudo o que aconteceu foi surreal, não há descrição possível. Quando de novo consegui chegar junto dos teus filhos, estes tinham tomado calmantes e foi um regozijo ver que estavam calmos e mais sorridentes, apesar do que se tinha acabado de passar. Naquela altura, abençoei o facto de existirem remédios tão preciosos. A noite caía, tivemos de vir para casa, mais uma vez foi muito difícil. Os dias seguintes têm-se passado entre tentativas de animar a tua família, de os fazer regressar à vida que tinham. Acredita que todo o apoio necessário lhes está a ser concedido por nós. Na tua falta, cuidaremos deles.

Desculpa escrever-te desta forma tão pessoal, mas foi a forma que encontrei para mais uma vez tentar aceitar o que sucedeu.

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